sábado, 29 de julho de 2023

O meu blog está, agora, numa nova plataforma! Na Medium!

Caros leitores e amigos,

Informo que, a partir desta data, o meu blog estará numa nova plataforma a Medium (clique aqui).

Esta primeira plataforma continuará ativa, embora tenha transferido as publicações para a Medium, onde passarei a publicar.

Muito gostaria que me continuassem a acompanhar.

Teria muito gosto que os meus seguidores, o continuassem a ser na nova plataforma.

Peço desculpa pela mudança (penso que será para melhor) e agradeço o apoio que me têm dispensado.

Agora é na Medium!

Até lá!


segunda-feira, 24 de julho de 2023

Ainda Vasco Rodrigues e a freguesia de S. João dos Caldeireiros

Na sequência da publicação Vasco Rodrigues… vinte anos!, após consulta d’ As Memórias Paroquiais de 1758 do Concelho de Mértola1, gentilmente cedido pela senhora Presidente da Junta de Freguesia da São João dos Caldeireiros, cabe aqui fazer um pouco de história e caracterização desta freguesia, no século XVIII.


Para “promover um melhor conhecimento da realidade do país ao nível administrativo e judicial, histórico, eclesiástico, demográfico, económico, orográfico e hidrográfico”, entre 1721 e 1758, promoveram-se quatro inquéritos envolvendo a globalidade das paróquias do Reino.


Embora se desconheça o prazo em que o inquérito de 1758 (enviado aos párocos) foi concluído, a maioria das respostas datam dos primeiros meses do ano. Os dados do concelho de Mértola são relativos às respostas a este inquérito. Os impressos do Inquérito foram remetidos pelo Arcebispo de Évora ao Vigário da Vara de Mértola e feitos chegar aos diferentes párocos do concelho. O prazo para as respostas serem remetidas foi, para a freguesia de S. João Batista, 1 de junho de 1758.


(S. João Batista, atualmente S. João dos Caldeireiros; a designação toponímica da atual freguesia generalizou-se apenas a partir do início do século XIX; doravante, passaremos a designá-la pela toponímia atual)


A freguesia de S. João dos Caldeireiros tinha, então, dezoito lugares, a saber: Vasco Roiz, Ledo, Pero da Vinha, Casa Velha, Corte do Pão e Água, Álvares, Touril, Romeiras, Camarinhas, Palma, Penilhos, Tacões, Corvo, Martianes, Quintão, Herdade de Santa Maria, Simões, Costa, com uma população total de 530 pessoas maiores de sete anos.


(Vasco Roiz, atualmente Vasco Rodrigues)

As paróquias do concelho de Mértola em meados do século XVIII

A aldeia de S. João dos Caldeireiros distava dezanove léguas de Évora (atualmente 130 km), capital do arcebispado, e trinta léguas de Lisboa (atualmente 221 km), capital do Reino.


(légua era a denominação de várias unidades de medidas de itinerários de comprimentos longos, utilizadas em Portugal, Brasil e outros países, até à introdução do sistema métrico; as várias unidades com esta denominação tinham valores que variavam entre 2 e 7 km)


O pároco recebia dos fregueses três molhos de trigo e vinte alqueires de cevada.


(por semana ou por mês?)


(alqueire designava originalmente uma das bolsas ou cestas de carga que se colocavam, atadas, sobre o dorso e pendente para ambos os lados dos animais usados para transporte de carga)


As serras de Pero da Vinha, Álvares e Caselas eram muito agrestes e secas, sem cursos de água e com temperaturas muito altas. A ribeira de Oeiras, que desagua no Guadiana, estava seca no Verão, conservando apenas algumas barragens.


Em relação às atividades económicas e recursos naturais, não havia criação de gado, verificando-se a caça a lobos, raposas, gatos monteses, perdizes e coelhos. Na agricultura, predominava o trigo, a cevada, o centeio e milho; nos frutos, os melões. Pesca de barbos, bogas, bordados a pardelhas. Existência de muitos moinhos para o fabrico de pão.


Relativamente ao terramoto de 1755, diz-se que a freguesia apenas registou danos na abóbada da igreja, que logo foram reparados.


De acordo com os censos de 2021, a freguesia tem atualmente 442 habitantes, menos 88 que em 1758. Perdizes e coelhos são ainda abundantes, suportando a atividade de caça desportiva, relevante na região. No Verão, as altas temperaturas e a falta de água continuam a estar presentes.


Observatório do Lince-Ibérico

O Centro de Interpretação e Observação do Lince-Ibérico, que fica situado em S. João dos Caldeireiros, é uma iniciativa que permite descobrir, conhecer melhor e ajudar a preservar esta espécie, que tem vindo a ser salva do perigo de extinção em território português. É um espaço aberto 24 horas por dia, que tem como propósito acolher visitantes num espaço sombreado, facultando informações sobre este ameaçado felino e o seu habitat, através de conteúdos expostos em painéis informativos. Deste local é possível observar o cercado onde, em 2014, no vale do Guadiana, foi libertado o 1º casal de linces-ibéricos no âmbito do Programa de Conservação Ibérico.


S. João dos Caldeireiros

Como disse, ando por estas bandas há vinte anos, S. João dos Caldeireiros era uma aldeia sem esgotos, de caminhos de terra batida, esburacados, com dificultado trânsito de peões, principalmente no Inverno. Em 2017, com obras de saneamento e arruamentos, fruto do bom trabalho das autarquias, é um local aprazível, bem cuidado, com ruas alcatroadas, sinalização vertical e horizontal para veículos, passadeiras, espaços verdes e de diversão para os menores. Merece ainda relevo o bom estado de conservação das habitações, fruto do cuidado dos residentes. Qualidade!


Vista noturna de Vasco Rodrigues

As autarquias locais, conquista de Abril instituída pelo artigo 235° da Constituição da República Portuguesa de 1976, “visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”, e tiveram, de facto, um papel fundamental na melhoria das condições de vida das populações. Embora tardio relativamente a esta data, este é um bom exemplo, entre muitos.



1: Boiça, Joaquim F. e Barros, Maria de Fátima R., As Terras, As Serras, Os Rios - As Memórias Paroquiais de 1758 do Concelho de Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, 1995


terça-feira, 11 de julho de 2023

As alterações climáticas e o aquecimento global

Na semana transata, registam-se dois recordes sucessivos da temperatura média do nosso planeta: 17,01 ºC na segunda-feira, 17,18 ºC na terça e na quarta-feira! O recorde anterior de 16,92 ºC tinha sido estabelecido em 24 de julho de 2022.

Confirmaram-se, assim, as previsões de que 2023 seria um ano em que tais recordes se iriam verificar, tendo em conta a atividade humana, principalmente no que diz respeito ao consumo de combustíveis fósseis.

Para estudar o aquecimento da Terra são utilizadas médias anuais ou de décadas, para serem ainda mais consolidadas, no entanto, estes recordes sucessivos são já sinais inequívocos deste fenómeno. Sabemos já que o ano de 2022 foi o oitavo consecutivo onde as temperaturas médias mundiais foram superiores em, pelo menos, 1 ºC aos níveis observados entre 1850 e 1900. Indicador consolidado e já preocupante, mas as projeções existentes dizem que, em 2023, podemos chegar aos 1,5 ºC, valor que é o limiar definido para o fim do século XXI. O passado mês de junho já foi o globalmente mais quente, com 0,5 ºC acima da média da década de 1991-2020.

Claro que os negacionistas dirão que "sempre foi assim, uns anos mais quentes, outros menos". Só que, agora, não é "mais, menos", é "mais, mais"!

Que consequências?

Desde logo, na saúde pública. De facto, a mortalidade pelo excesso de calor é elevada. A temperatura ideal para o funcionamento do corpo humano é de 37 ºC. Quando há um sobreaquecimente, os mecanismos reguladores de temperatura fazem perder água e a desidratação faz com o sangue fique mais concentrado, obrigando ao maior esforço do coração para o bombear, aumentando os problemas cardíacos e de outros órgãos. Se a humidade do ar for alta, pior ainda; impede a evaporação, com prejuízo da regulação da temperatura do organismo. Recomendação: proteger do calor e beber muita água.

A subida do nível das águas é outra consequência. Como bem sabemos, o calor dilata os corpos, dilata a matéria, logo, também dilata a água. O calor provoca a expansão da água, isto para além de derreter as calotes polares. Sabendo que a água líquida ocupa mais espaço que a sólida, a consequência é a subida do nível médio das águas, aumento da erosão costeira, perda de território e aumento das inundações.

(casos há em que, para além da subida do nível das águas, também há afundamento de terrenos, como é o caso de Nova Iorque, devido ao peso dos arranha-céus)

O planeamento de grandes infraestruturas em zonas litorais e ribeirinhas deverá ter em conta que a médio e longo prazo poderão ser zonas inundáveis.

(será um dos fatores ponderados nos critérios para a escolha da localização do novo aeroporto de Lisboa?)

"Os desafios de um mar que não pára de subir", Público on-line, 17.04.2023

Um estudo elaborado por uma equipa da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, liderada pelo professor Carlos Antunes, apresenta um cenário de uma subida de um metro entre 2000 e 2100, aos quais se adicionam 13 centímetros de subida, já verificada em 2000.

Em Portugal continental, as zonas mais afetadas serão a ria de Aveiro, a zona de Lisboa, o estuário do Tejo e Setúbal, o Parque Natural da Ria Formosa e a área de Vila Real de Santo António e Monte Gordo. Na margem Sul do Tejo, as zonas de grande vulnerabilidade são a Base Naval do Alfeite, o Terminal de Transportes Multimodal do Barreiro e, no Montijo, a base aérea, a estação fluvial e a zona histórica (assinaladas na figura).

Lisboa e estuário do Tejo, Público on-line, 17.04.2023

Alterações nos habitats das espécies vivas e sua extinção (com consequências para o equilíbrio dos ecossistemas), alterações nos padrões de precipitação e acidificação dos oceanos (com consequências para as espécies marinhas) são algumas das outras consequências.

O efeito de estufa na Terra é essencial para a existência de temperaturas compatíveis com a vida. O excesso deste efeito, tal como está a acontecer, origina o sobreaquecimente de que falamos. Retardar o aquecimento global implica diminuir a libertação de gases com este efeito - dióxido de carbono, metano, óxido nitroso, clorofluocarbonetos, também o ozono e o vapor de água, mas são estes os responsáveis pela temperatura que permitiu e permite a vida na Terra.

O que fazer?

Aplicar a política dos três Rs - reduzir, reutilizar e reciclar materiais, reflorestamento, reduzir o consumo de energia e usar fontes renováveis, economizar água e luz, consumir alimentos agroecológicos, entre outras ações.

“Os apoios à descarbonização da indústria vão chegar a mais 179 empresas, num investimento elegível superior a 1,1 mil milhões de euros e com um apoio de 500 milhões do PRR [...] Começou a ser testada em Madrid uma estação de abastecimento de veículos com hidrogénio verde produzido localmente, com tecnologia da portuguesa Fusion Fuel. Em Portugal uma estação similar nascerá em Elvas até 2025. Mas o investimento ainda é elevado e precisa de subsídios”, noticia o Expresso.

O tema das alterações climáticas, do aquecimento global, tem sido um dos mais relevantes para a juventude do nosso tempo. O mesmo não acontece com as faixas etárias mais velhas. Pais, avós, empresários e classe política, numa atitude egoista, estão longe de dar a atenção que o tema merece. Pode haver discurso mas, face à urgência e às necessidades, a prática é ainda muito insuficiente.

Não por desconhecimento, não por falta de avisos da ciência e da própria Terra, mas por puro egoísmo! Somos assim! O mal maior já não nos vai cair em cima e, mesmo sabendo que cairá nos nossos filhos e netos, mesmo sabendo isso, nada fazemos que possa ter resultados a curto e médio prazo, ou fazemos muito pouco.

A espécie humana caminha, inevitavelmente, para a extinção. Pugnemos pela qualidade da vida que nos resta.

(quando escrevo esta publicação, a minha amiga Amélia Antunes partilhou no seu perfil do Facebook "Agora...Nunca é Tarde!", do Pedro Barroso. A minha colega e amiga, professora Felisbela Romão, comentou: "um arrepio de alma")

(em 2004, a Felisbela fez a tradução do resumo da minha dissertação de mestrado. O meu inglês nunca permitiria a proficiência com que ela o fez. Bons tempos)

Na sua brilhante atuação, o saudoso Pedro Barroso (1950-2020) disse, então, que,

Conferindo aquilo que acreditamos

E o que ainda formos capazes de sonhar

E se aquilo que nos dão todos os dias

Não for coisa que se cheire ou nos deslumbre

Que pelo menos nunca abdiquemos de pensar

Com direito à ironia, ao sonho, ao ser diferente

E será talvez uma forma inteligente de, afinal, nunca

Nunca ser tarde demais para viver

Nunca ser tarde demais para perceber

Nunca ser tarde demais para exigir

E nunca ser tarde demais para acordar

E como isto se aplica não só ao que aqui escrevemos, mas a tudo o que nos inquieta, a tudo o que nos revolta, a tudo o que poderia ser melhor, bem melhor!

Nunca é tarde demais.


quarta-feira, 5 de julho de 2023

A vida por um fio

O segundo período do ano letivo de 2019-2020 tinha começado a 6 de janeiro, um pouco mais tarde que o habitual. Estamos, por isso, ainda em fase de aquecimento.

10 de janeiro de 2020, sexta-feira

Dia da semana sem componente letiva. Levanto-me cedo para ir ao ginásio. Às oito horas já estou no Be-Fit, no Montijo Retail Park. Bom exercício, uma boa prestação na passadeira e noutros aparelhos. Com 63 anos, não está nada mal. Sinto-me bem, em forma. Um bom banho, revigorante, estou como novo. Já não como antes, claro. A fazer corridas regulares, talvez a partir dos 50, aos 60 comecei a notar uma quebra, deixei de evoluir nas performances. Normal.

09H00M, em casa. Está um dia de sol, este janeiro de 2020 foi um mês quente e seco, coisa que há uns anos atrás não acontecia. Sento-me ao computador para preparar a próxima semana de aulas. O segundo período letivo é longo e exigente e tenho uma turma do 11º ano de Biologia e Geologia, com exame nacional no fim do ano. Uma boa turma, espero bons resultados.

09H30M, uma dor no peito, como já me tinha acontecido várias vezes, passageiras, nada de anormal, dores nervosas, como dizemos. Mas, desta vez, não estava a ser bem assim. A dor persistia, um aperto no peito que se avolumava. Aguentei, mudei de posição, deitei-me, mas nada resultava. A dor crescia e senti uma dormência no braço esquerdo. Comecei a pensar o pior - coração! Já não tinha muitas dúvidas.

Liguei ao Filipe.

-- Estou com uma dor no peito já há algum tempo e não passa.

-- Estás a brincar, pai?

-- Não, não estou.

-- Vou já para aí.

Liguei, depois, à minha mulher e disse que já tinha chamado o Filipe.

Poucos minutos depois, estamos a caminho do Hospital de Santa Maria (HSM), a melhor unidade para estes casos, diz a experiência do Filipe, bombeiro sapador em Lisboa. 160 km/h na Ponte Vaso da Gama. O Honda Type R permitia muito mais, mas é melhor ter juízo, para não morrermos todos da cura. A dor persistia, aumentava, com a dormência no braço.

Às 11H28M dei entrada na urgência e, com alguma dificuldade, consegui identificar-me e informar dos sintomas. De imediato, entrei na triagem - laranja - muito urgente. Atendimento imediato.

Segue-se uma parafernália de exames, eletrocardiogramas, questionários, análises, monitorização permanente e uma surpresa - o André Mafra, meu ex-aluno nos 10º e 11º anos, é enfermeiro da urgência e faz-me uma assistência com um profissionalismo exemplar, como, aliás, todos os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde que me rodearam.

— Dispa-se e deite-se na maca, professor. Não o quero muito tempo em pé.

O bombeiro sapador Filipe Evangelista apareceu por lá. Outra das enfermeiras era também do Montijo, com um filho a estudar na Escola Secundária Jorge Peixinho (ESJP) e, sabendo que eu era lá professor, teceu os seus elogios ao diretor de turma Marco Ferradini, colega de Matemática que bem conhecia. Dizer que me senti em casa é exagerado, mas não faltou muito. As dores continuavam, talvez um pouco mais aliviadas.

Fios que me ligam a máquinas, monitores, sons, bips intermitentes, tudo à minha volta são máquinas, monitores, médicos, enfermeiros e operacionais. Mantêm-me monitorizado na sala de reanimações.

(soube depois que era aí que me encontrava)

Entre outra medicação, morfina, que me alivia a dor. O André recebe resultados e olha os monitores:

— Isto foi mesmo a sério, professor. Enfarte agudo de miocárdio.

Tendo histórico de policitémia, faço flebotomia.

(a flebotomia é o processo de fazer uma punção numa veia, geralmente no braço, com uma cânula, com a finalidade de tirar sangue)

17H00M, mais estabilizado, sou transferido para o serviço de observação da urgência central - cuidados intensivos.

Grande sala, com um balcão central com computadores, onde médicos e enfermeiros fazem os seus registos, fazem as suas pesquisas, os seus diagnósticos.

À volta, camas com equipamentos de monitorização cardíaca, oxímetros e outras funções vitais. Bips intermitentes ou contínuos, quando algum doente precisa de atenção imediata.

Já ao fim da tarde, permitem uma visita relâmpago da mulher e do filho. Muito bom.

Com os fios de monitorização cardíaca, oximetro, medição de temperatura, mobilidade muito reduzida, dores no peito (embora não insuportáveis), visita frequente de enfermeiros e médicos, alguns colegas mais agitados. Não se dorme, ou dorme-se muito pouco, a curtos espaços de tempo, quando o sono é mais forte. O intenso movimento de médicos e enfermeiros é permanente, 24 horas por dia.

11 de janeiro de 2020, sábado

De manhã, um banho, ou algo parecido. Duas enfermeiras (?) passam-me compressas com sabão pelo corpo. Viram-me para à esquerda, para a direita, para terem acesso às costas. Limpam-me, depois.

A mesma monitorização, constantemente. Mais uma rápida visita da família.

10H00M, sou transportado para uma sala para fazer cateterismo.

(realizado pela Cardiologia de Intervenção, o cateterismo é um exame que consiste na introdução de um cateter (tubo oco) dentro de um vaso sanguíneo, nomeadamente da artéria femoral (na virilha) ou da artéria radial (no antebraço), através de uma punção. Esse tubo é então conduzido até ao coração. O doente pode estar acordado durante o exame, sendo feita anestesia apenas no local da punção)

Sala quase completamente ocupada pelos equipamentos e pela maca. Monitor enorme, que permite visualizar todo o cateterismo - o coração e o seu batimento e o percurso do cateter, pela coronária, até ao interior do coração. Estou acordado, o cateter é introduzido na virilha e penetra na artéria femural. Dói. Acompanho toda a operação.

A artéria coronária está parcialmente obstruída. É feita uma angioplastia e colocado de um stent.

(na angioplastia coronária, os médicos introduzem um tubo muito fino (cateter), com um balão na extremidade, dentro da artéria que está obstruída, dilatando-a de forma a que seja possível retomar o fluxo de sangue. Por vezes, é também implantada uma rede ou malha metálica (stent ou endoprótese) para garantir que a artéria se mantém aberta para deixar fluir o sangue)

Volto aos cuidados intensivos da urgência central. As dores, agora, são fortes e opressivas. Talvez ainda mais fortes que na altura do enfarte. Os enfermeiros dizem que, depois do cateterismo, é normal. A medicação (morfina?) pouco adianta. Dizem-me que irá aliviando, mas a evolução foi muito lenta. Momentos difíceis.

17H00M, alta para transferência interna para o sétimo andar, serviço de cardiologia. O pior estaria passado. No quarto, fui encontrar três colegas de doença: Janino, José Pereira e Nuno Santos. Bons colegas, que não vou esquecer. O Janino, menos conversador, mais reservado, mais aberto nos últimos dias.

11.01.2020, 19H:43M, serviço de cardiologia

Não posso esquecer um momento hilariante (que, no meio disto tudo, também há), quando o Janino, que gostava muito de usar o mecanismo de elevação da cama do hospital, não sei como o fez mas, quando demos por isso, estava o Janino deitado, mas quase na posição vertical e quase a bater no teto!

Depois de instalado e estabilizado no quarto, peço o telemóvel do Nuno para informar a minha mulher que já estava no serviço de cardiologia. Passado pouco tempo, lá estava ela com o Filipe, na visita. Eram boas notícias.

Já com o telemóvel, recebo uma mensagem da minha nora Daniela:

— Gosto muito de si.

(a Daniela é uma excelente nora, de quem gosto muito e sei que também gosta de mim, mas dizer-me isso cara a cara, não é dessas coisas. Acho que ela lá pensou, “deixa-me cá dizer-lhe, não vá ser tarde demais”)

12 de janeiro de 2020, domingo

As dores eram suportáveis, pequeno-almoço na cama (um luxo). Com fios que ligavam o tórax a uma caixa que, por wi-fi, levava todos os dados da atividade cardíaca até ao sistema hospitalar - monitores nas salas de médicos e enfermeiros e nos corredores; com estas coisas no corpo e algumas dores, o banho não era fácil. Foi acontecendo, o melhor possível.

A propósito de refeições, um dia, ainda experimentei o jantar servido pelo hospital, mas foi o último. De facto, com muito má qualidade, foi o único aspecto negativo que registei nesta minha estada no HSM. Tudo resolvido com as refeições que, diariamente, me traziam de casa.

Entretanto, fomos tendo visitas de estudantes de medicina que nos faziam um interrogatório sobre as nossas história e a situação clínica. Perguntavam tudo, tudo! Mais de uma hora para cada entrevista!

(a partir da terceira entrevista, talvez tenha deixado de ser tão colaborativo como nas primeiras vezes. De facto, por muito compreensivos que fossemos, e foi com muito agrado que respondi aos dois primeiros estudantes, não estávamos na melhor situação para 4 ou 5 horas de entrevistas. Não os estudantes, mas quem requer questionários com estas dimensões, deveria ter este facto em atenção)

13 de janeiro de 2020, segunda-feira

Tudo parecia correr bem e tinha a perspetiva de não ficar internado muitos mais dias.

Era tempo de informar a minha escola, sobre o que se estava a passar e que não iria estar lá na segunda-feira. Enviei mensagem para o Nuno Martins, membro da direção e meu colega de grupo disciplinar.

— Olá, Nuno. Tive um enfarte agudo de miocárdio, estou no HSM. Segunda-feira não vou. Está tudo a correr bem. Peço que mandes avisar os alunos. Um abraço.

— Bela maneira de começar o ano! As melhoras. Não te preocupes.

O caso passou a ser conhecido na ESJP e comecei a receber mensagens de colegas, que sempre nos vão animando. Sinal de agradável reconhecimento e amizade.

O horário de visitas era das 14 às 20 horas e todos os dias recebíamos os nossos familiares.

Ao fim da tarde, já depois das visitas, começo a ter algumas tonturas e má disposição simultânea. Coisa passageira, mas que se ia repetindo. A partir de certa altura, a seguir a cada episódio que referi, recebo visita da enfermeira a perguntar se estou bem, dizia que já tinha passado e explicava os sintomas. Alguma coisa estava a acontecer.

Médicos e enfermeiros vieram explicar-me que estava a ter pausas cardíacas. Pausas… designação simpática para dizer que o coração parava por alguns segundos. Estavam a avaliar a possibilidade de me implantarem um pacemaker, mas a lista de espera era grande, poderia demorar alguns dias.

(o pacemaker é um pequeno aparelho que é colocado debaixo da pele para controlar e promover os batimentos cardíacos. Geralmente tem duas partes, o gerador (a caixa do pacemaker) e os eletrocateteres (pequenos cabos eléctricos que fazem a ligação ao coração. Existem muitos motivos para a implantação de um pacemaker. O envelhecer natural do sistema eléctrico do coração com a falhas da condução eléctrica é o principal motivo. Outros motivos para a implantação de um pacemaker incluem arritmias (ritmos cardíacos anómalos) com ritmo muito rápido ou lento, alterações genéticas e intervenções em válvulas cardíacas)

Veio também a notícia de que estava proibido de ir ao WC sozinho. A qualquer hora do dia ou da noite, deveria chamar a auxiliar para me levar em cadeira de rodas, mesmo até ao interior do WC, sempre vigiado. Perigo de cair.

Liguei ao Filipe. Ele apercebeu-se que não estava bem. Pedi-lhe para não dizer nada à mãe.

O ânimo que sempre tive, caiu. Pensamos na família, pensamos nos netos e no tempo que ainda nos falta viver com eles. Pensamos no que ainda queremos fazer. A perspetiva de já não sair do hospital tão cedo. Confesso que nunca pensei na morte. A morte é aquele momento. Mais importante é a qualidade do tempo que passa, até lá chegar.

("o que extingue a vida e os seus sinais, não é a morte, mas o esquecimento. A diferença entre a morte e a vida é essa." Cadernos de Lanzarote - Diário III, José Saramago)

Tive medo de ficar incapaz de viver, tive medo que o meu corpo se esquecesse de viver. Mas nunca pensei em morrer. Uma noite inteira a pensar nisto. As horas não passavam

(a noite… a noite é terrível para estes pensamentos. O tempo que não passa, o silêncio que promove, que facilita o pensamento. Para a relatividade e espaço-tempo de Einstein, o tempo pode até correr para a frente ou para trás. Nestas noites, até parece (?) que o tempo pára ou retarda, de facto)

Com companhia, fui uma vez ao WC.

14 de janeiro de 2020, terça-feira

A noite já foi, é outro dia.

Com mais frequência, as pausas cardíacas continuavam. Pouco depois das 14 horas, o Filipe e a Beta vêm à visita. Há visitas também para os meus colegas de quarto. Conversamos. O Filipe, entretanto, sai do quarto. Passado algum tempo, entra a correr e em pânico:

— Pai, pai, estás bem?

Tinha acontecido a maior pausa cardíaca até ao momento e ele, no monitor do corredor, tinha visto o traçado da minha atividade cardíaca ficar convertido numa linha reta.Piiiiiiiiii.

Passado pouco tempo, recebo a visita de duas médicas. Com caráter de urgência, saindo da longa lista de espera, vão implantar-me um pacemaker.

Volto passada uma hora, talvez. O alojamento da caixa do pacemaker é dolorosa. Está feito. Junto ao ombro esquerdo, tenho a máquina a trabalhar, afinada para os 60 bpm. Se tudo correr bem, saio no dia seguinte.

15.01.2020, 03H36M, após colocação do pacemaker

A noite não foi fácil. Com gelo em cima, fios ligados, sem me poder mexer.

(o tempo outra vez a ser mais lento)

15 de janeiro de 2020, quarta-feira

A meio da manhã, visita da médica e da enfermeira. A alta vai acontecer. Fui o último a chegar ao quarto e vou ser o primeiro a sair. O José Pereira sairia também nesse dia. Era bom que saíssem todos. Fiquei com essa mágoa. Sairiam depois, penso que estão bem. Um grande abraço para eles.  

15.01.2020, 13H15M, após a alta.
A cama do Janino, eu, o Janino, o José Pereira e o Nuno Santos

A vida por um fio, que resistiu. Uma nova vida.

Álvaro de Campos disse que "a verdadeira vida é a que sonhamos na infância e que continuamos sonhando, adultos."

Com pacemaker, stent... e lente intraocular, sou um pouco cyborg,

(já somos muitos, seremos cada vez mais)

mas estou vivo, sonhei e continuo a sonhar. 

Ao meio-dia tenho alta.

15.01.2020, 16H:37M, primeira foto da nova vida, com a neta Filipa
(o Rafael estava na escola)

(registo o profissionalismo de todos os trabalhadores da saúde que, me trataram de uma forma exemplar em todo o meu internamento. Disto dei notícia à administração do HSM. O meu ex-aluno, Enfermeiro André Mafra, foi de um carinho, uma atenção, um profissionalismo inexcedíveis, foi o primeiro a atender-me na sala de reanimações da urgência central, visitou-me e manteve a sua preocupação nos cuidados intensivos e no serviço de cardiologia. Muito para além do que seria a sua obrigação profissional. Dois meses depois, chegou a Covid-19. Como seria? Não poderia ser igual. Inevitávelmente)

Apresentei-me ao serviço, na ESJP, em 10 de fevereiro de 2020, exatamente um mês depois, e cinco dias antes de terminar o período de baixa do atestado médico.


domingo, 2 de julho de 2023

Um dia diferente

Os dias correm, correm muito depressa. Quando damos por isso, já passou. Já passou um dia, já passou uma semana, já passou um ano, já passaram dez anos, já passaram vinte anos... na minha última publicação (Vasco Rodrigues... vinte anos!), falei de acontecimentos de há vinte anos. Parece que foi ontem!

Nem sempre foi assim, quando somos jovens o tempo custa a passar, queremos acelerar, temos pressa. Por vezes ponho-me a pensar que, de facto, o tempo hoje passa mais depressa, que não é apenas a nossa perceção.

(Albert Einstein, na sua Teoria da Relatividade, introduziu o conceito espaço-tempo como um conjunto, como uma única variedade de quatro dimensões, tratando o tempo como uma dimensão adicional às três dimensões espaciais, inseparável destas, já que a passagem do tempo - velocidade do objeto -  não é sempre igual, depende da velocidade do observador. Einstein contraria, assim, a mecânica clássica de Isaac Newton, em que o tempo é considerado uma unidade de medida universal. No nosso dia a dia, é esta ainda a idéia que prevalece. Isto para dizer que, tal como Einstein contrariou a teoria de Newton, quem sabe, alguém, um dia, me venha a dar razão! Quem sabe)


Para além dos dias ditos comuns, rotineiros, há dias que, sem que na altura nos seja percetível, serão insequecíveis. Ficam marcados na nossa história.


No âmbito da Avaliação de Desempenho Docente, a Marta, Diretora do Cenforma - Centro de Formação de Professores de Montijo e Alcochete, nomeou-me avaliador externo de duas colegas docentes da Escola Básica 2,3 de Pegões, escola sede do Agrupamento de Escolas de Pegões, Canha e Sto. Isidro.

(recordando, fui o primeiro diretor do Cenforma, entre 1993 e 1995, a minha colega e amiga Maria Aurélia Marcelino foi a autora do seu primeiro logótipo, escolhido por concurso; saudades da Maria Aurélia)

(Foi recentemente nomeado o novo diretor do Cenforma, Custódio Lagartixa, colega e amigo a quem desejo as maiores felicidades e sucessos)

24 de fevereiro de 2022, 06H30M, levantar. Acordar já foi há uma hora atrás, como sempre acontece quando saio da rotina. Pequeno-almoço e a caminho de Pegões. Levei o Type R.

(o Type R é um Honda Civic, uma vaidosice minha. Um carro com performences a mais para a minha idade, mas não para a idade do Filipe. Uma sociedade familiar)

7H45M, Escola Básica 2,3 de Pegões. Há muito que não visitava esta escola. Boas recordações.

(a Escola Básica 2,3 de Pegões foi inaugurada em 1997, durante o exercício das minhas funções de Coordenador do Centro da Área Educativa da Península de Setúbal, tendo eu indicado o meu colega e amigo Flamino Viola para Presidente da Comissão Instaladora; o Flamino levou consigo outro colega e amigo, o Carlos Romão, e a colega Fátima Vilela, com quem tenho menos contactos)

Recebido pela Diretora Mavilde Albino, fui assistir à primeira aula da colega Paula. 8º ano de Ciências Naturais. Recursos geológicos - proteção e conservação da natureza - foi o tema tratado, com incidência especial no impacte ambiental das pedreiras. Uma boa aula.

10H:00M, no Type R, o iogurte do meio da manhã. Ligo ao Filipe.

-- Tudo bem?
-- O Rafael está com Covid. Está aqui deitado no sofá. Agora devemos ter todos.
-- Pois, provavelmente. Eu, até ver, não tenho sintomas nenhuns.
-- Aqui em casa, por enquanto, é só ele, mas temos de ir fazer teste. Não sei se já sabes, mas a Rússia invadiu a Ucrânia, estão em guerra.
-- Não sabia! Eles andavam a ameaçar.
(Às primeiras horas de ontem, o poderio militar russo foi projectado nas três frentes onde, durante meses, se acumularam mais de 150 mil soldados, equipamento, artilharia e material logístico. Através do Donbass, no Leste, em apoio às forças separatistas, pelo norte, por via da Bielorrússia, e pelo sul, a partir da Crimeia, a península anexada por Moscovo em 2014. A ofensiva foi lançada por terra, mar e ar. Público, 25.02.2022)
E já lá vão dezasseis meses! O impensável aconteceu! A guerra regressou à Europa, numa das maiores ofensivas no continente, desde a II Guerra Mundial! Pela mão de Putin, que encarna a vingança daqueles que não apoiaram a queda da URSS e a sua metamorfose em democracia.
(Kiev viveu mais uma noite agitada, com bombardeamentos russos sobre a capital a fazerem disparar as sirenes toda a noite. Os estilhaços de um ataque com drone provocaram um ferido, mas todas as ameças foram destruídas pelas antiaéreas ucranianas, dizem as autoridades locais. Volodymyr Zelensky disse aos jornalistas que pelo menos 21 mil soldados do Grupo Wagner já perderam a vida no leste da Ucrânia, número impossível de confirmar. Certo é que o império de propaganda do chefe dos mercenários, Yevgeny Prigozhin, vai encerrar, mais um castigo pela tentativa falhada de motim do passado dia 24 de junho. Expresso on-line, 02.07.2023)
11H35M, volto à mesma sala de aula, para obervação da aula da Lídia. 8º ano de Ciências Naturais. Ecossistemas - fluxos de energia e ciclos de matéria, é o tema. Outra boa aula.

13H:20M, volto ao Type R para regressar ao Montijo. Era o fim do turno da manhã, alunos de saída, outros a entrar. Muitos em volta do carro. Pedi licença para entrar.

-- Grande máquina! O carro é seu, professor?
-- É verdade.
-- Fixe, professor. Grande máquina!

Era claro que, para além de apreciarem o Type R, queriam dizer que eu já não tinha idade para aquilo. Devia ter juízo. Concordo.

Chegado a casa, o neto Rafael prostrado no sofá. De tarde, os pais foram fazer o teste ao SARS Cov-2 - positivo. Eu e a minha mulher fizemos no dia seguinte, de manhã - positivo. Todos de quarentena, durante sete dias. No fim dos sete dias, foi a vez da neta Filipa. Ficámos todos bem. Pensamos nós.

O regresso à escola de Pegões. A guerra na Europa. Covid-19. Um dia diferente. De todos os dias da nossa vida, só alguns ficam a fazer parte da nossa história.

Como diz Saramago em Cadernos de Lanzarote - Diário II,
Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.

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