O segundo período do ano letivo de 2019-2020 tinha começado a 6 de janeiro, um pouco mais tarde que o habitual. Estamos, por isso, ainda em fase de aquecimento.
10 de janeiro de 2020, sexta-feira
Dia da semana sem componente letiva. Levanto-me cedo para ir ao ginásio. Às oito horas já estou no Be-Fit, no Montijo Retail Park. Bom exercício, uma boa prestação na passadeira e noutros aparelhos. Com 63 anos, não está nada mal. Sinto-me bem, em forma. Um bom banho, revigorante, estou como novo. Já não como antes, claro. A fazer corridas regulares, talvez a partir dos 50, aos 60 comecei a notar uma quebra, deixei de evoluir nas performances. Normal.
09H00M, em casa. Está um dia de sol, este janeiro de 2020 foi um mês quente e seco, coisa que há uns anos atrás não acontecia. Sento-me ao computador para preparar a próxima semana de aulas. O segundo período letivo é longo e exigente e tenho uma turma do 11º ano de Biologia e Geologia, com exame nacional no fim do ano. Uma boa turma, espero bons resultados.
09H30M, uma dor no peito, como já me tinha acontecido várias vezes, passageiras, nada de anormal, dores nervosas, como dizemos. Mas, desta vez, não estava a ser bem assim. A dor persistia, um aperto no peito que se avolumava. Aguentei, mudei de posição, deitei-me, mas nada resultava. A dor crescia e senti uma dormência no braço esquerdo. Comecei a pensar o pior - coração! Já não tinha muitas dúvidas.
Liguei ao Filipe.
-- Estou com uma dor no peito já há algum tempo e não passa.
-- Estás a brincar, pai?
-- Não, não estou.
-- Vou já para aí.
Liguei, depois, à minha mulher e disse que já tinha chamado o Filipe.
Poucos minutos depois, estamos a caminho do Hospital de Santa Maria (HSM), a melhor unidade para estes casos, diz a experiência do Filipe, bombeiro sapador em Lisboa. 160 km/h na Ponte Vaso da Gama. O Honda Type R permitia muito mais, mas é melhor ter juízo, para não morrermos todos da cura. A dor persistia, aumentava, com a dormência no braço.
Às 11H28M dei entrada na urgência e, com alguma dificuldade, consegui identificar-me e informar dos sintomas. De imediato, entrei na triagem - laranja - muito urgente. Atendimento imediato.
Segue-se uma parafernália de exames, eletrocardiogramas, questionários, análises, monitorização permanente e uma surpresa - o André Mafra, meu ex-aluno nos 10º e 11º anos, é enfermeiro da urgência e faz-me uma assistência com um profissionalismo exemplar, como, aliás, todos os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde que me rodearam.
— Dispa-se e deite-se na maca, professor. Não o quero muito tempo em pé.
O bombeiro sapador Filipe Evangelista apareceu por lá. Outra das enfermeiras era também do Montijo, com um filho a estudar na Escola Secundária Jorge Peixinho (ESJP) e, sabendo que eu era lá professor, teceu os seus elogios ao diretor de turma Marco Ferradini, colega de Matemática que bem conhecia. Dizer que me senti em casa é exagerado, mas não faltou muito. As dores continuavam, talvez um pouco mais aliviadas.
Fios que me ligam a máquinas, monitores, sons, bips intermitentes, tudo à minha volta são máquinas, monitores, médicos, enfermeiros e operacionais. Mantêm-me monitorizado na sala de reanimações.
(soube depois que era aí que me encontrava)
Entre outra medicação, morfina, que me alivia a dor. O André recebe resultados e olha os monitores:
— Isto foi mesmo a sério, professor. Enfarte agudo de miocárdio.
Tendo histórico de policitémia, faço flebotomia.
(a flebotomia é o processo de fazer uma punção numa veia, geralmente no braço, com uma cânula, com a finalidade de tirar sangue)
17H00M, mais estabilizado, sou transferido para o serviço de observação da urgência central - cuidados intensivos.
Grande sala, com um balcão central com computadores, onde médicos e enfermeiros fazem os seus registos, fazem as suas pesquisas, os seus diagnósticos.
À volta, camas com equipamentos de monitorização cardíaca, oxímetros e outras funções vitais. Bips intermitentes ou contínuos, quando algum doente precisa de atenção imediata.
Já ao fim da tarde, permitem uma visita relâmpago da mulher e do filho. Muito bom.
Com os fios de monitorização cardíaca, oximetro, medição de temperatura, mobilidade muito reduzida, dores no peito (embora não insuportáveis), visita frequente de enfermeiros e médicos, alguns colegas mais agitados. Não se dorme, ou dorme-se muito pouco, a curtos espaços de tempo, quando o sono é mais forte. O intenso movimento de médicos e enfermeiros é permanente, 24 horas por dia.
11 de janeiro de 2020, sábado
De manhã, um banho, ou algo parecido. Duas enfermeiras (?) passam-me compressas com sabão pelo corpo. Viram-me para à esquerda, para a direita, para terem acesso às costas. Limpam-me, depois.
A mesma monitorização, constantemente. Mais uma rápida visita da família.
10H00M, sou transportado para uma sala para fazer cateterismo.
(realizado pela Cardiologia de Intervenção, o cateterismo é um exame que consiste na introdução de um cateter (tubo oco) dentro de um vaso sanguíneo, nomeadamente da artéria femoral (na virilha) ou da artéria radial (no antebraço), através de uma punção. Esse tubo é então conduzido até ao coração. O doente pode estar acordado durante o exame, sendo feita anestesia apenas no local da punção)
Sala quase completamente ocupada pelos equipamentos e pela maca. Monitor enorme, que permite visualizar todo o cateterismo - o coração e o seu batimento e o percurso do cateter, pela coronária, até ao interior do coração. Estou acordado, o cateter é introduzido na virilha e penetra na artéria femural. Dói. Acompanho toda a operação.
A artéria coronária está parcialmente obstruída. É feita uma angioplastia e colocado de um stent.
(na angioplastia coronária, os médicos introduzem um tubo muito fino (cateter), com um balão na extremidade, dentro da artéria que está obstruída, dilatando-a de forma a que seja possível retomar o fluxo de sangue. Por vezes, é também implantada uma rede ou malha metálica (stent ou endoprótese) para garantir que a artéria se mantém aberta para deixar fluir o sangue)
Volto aos cuidados intensivos da urgência central. As dores, agora, são fortes e opressivas. Talvez ainda mais fortes que na altura do enfarte. Os enfermeiros dizem que, depois do cateterismo, é normal. A medicação (morfina?) pouco adianta. Dizem-me que irá aliviando, mas a evolução foi muito lenta. Momentos difíceis.
17H00M, alta para transferência interna para o sétimo andar, serviço de cardiologia. O pior estaria passado. No quarto, fui encontrar três colegas de doença: Janino, José Pereira e Nuno Santos. Bons colegas, que não vou esquecer. O Janino, menos conversador, mais reservado, mais aberto nos últimos dias.
11.01.2020, 19H:43M, serviço de cardiologia
Não posso esquecer um momento hilariante (que, no meio disto tudo, também há), quando o Janino, que gostava muito de usar o mecanismo de elevação da cama do hospital, não sei como o fez mas, quando demos por isso, estava o Janino deitado, mas quase na posição vertical e quase a bater no teto!
Depois de instalado e estabilizado no quarto, peço o telemóvel do Nuno para informar a minha mulher que já estava no serviço de cardiologia. Passado pouco tempo, lá estava ela com o Filipe, na visita. Eram boas notícias.
Já com o telemóvel, recebo uma mensagem da minha nora Daniela:
— Gosto muito de si.
(a Daniela é uma excelente nora, de quem gosto muito e sei que também gosta de mim, mas dizer-me isso cara a cara, não é dessas coisas. Acho que ela lá pensou, “deixa-me cá dizer-lhe, não vá ser tarde demais”)
12 de janeiro de 2020, domingo
As dores eram suportáveis, pequeno-almoço na cama (um luxo). Com fios que ligavam o tórax a uma caixa que, por wi-fi, levava todos os dados da atividade cardíaca até ao sistema hospitalar - monitores nas salas de médicos e enfermeiros e nos corredores; com estas coisas no corpo e algumas dores, o banho não era fácil. Foi acontecendo, o melhor possível.
A propósito de refeições, um dia, ainda experimentei o jantar servido pelo hospital, mas foi o último. De facto, com muito má qualidade, foi o único aspecto negativo que registei nesta minha estada no HSM. Tudo resolvido com as refeições que, diariamente, me traziam de casa.
Entretanto, fomos tendo visitas de estudantes de medicina que nos faziam um interrogatório sobre as nossas história e a situação clínica. Perguntavam tudo, tudo! Mais de uma hora para cada entrevista!
(a partir da terceira entrevista, talvez tenha deixado de ser tão colaborativo como nas primeiras vezes. De facto, por muito compreensivos que fossemos, e foi com muito agrado que respondi aos dois primeiros estudantes, não estávamos na melhor situação para 4 ou 5 horas de entrevistas. Não os estudantes, mas quem requer questionários com estas dimensões, deveria ter este facto em atenção)
13 de janeiro de 2020, segunda-feira
Tudo parecia correr bem e tinha a perspetiva de não ficar internado muitos mais dias.
Era tempo de informar a minha escola, sobre o que se estava a passar e que não iria estar lá na segunda-feira. Enviei mensagem para o Nuno Martins, membro da direção e meu colega de grupo disciplinar.
— Olá, Nuno. Tive um enfarte agudo de miocárdio, estou no HSM. Segunda-feira não vou. Está tudo a correr bem. Peço que mandes avisar os alunos. Um abraço.
— Bela maneira de começar o ano! As melhoras. Não te preocupes.
O caso passou a ser conhecido na ESJP e comecei a receber mensagens de colegas, que sempre nos vão animando. Sinal de agradável reconhecimento e amizade.
O horário de visitas era das 14 às 20 horas e todos os dias recebíamos os nossos familiares.
Ao fim da tarde, já depois das visitas, começo a ter algumas tonturas e má disposição simultânea. Coisa passageira, mas que se ia repetindo. A partir de certa altura, a seguir a cada episódio que referi, recebo visita da enfermeira a perguntar se estou bem, dizia que já tinha passado e explicava os sintomas. Alguma coisa estava a acontecer.
Médicos e enfermeiros vieram explicar-me que estava a ter pausas cardíacas. Pausas… designação simpática para dizer que o coração parava por alguns segundos. Estavam a avaliar a possibilidade de me implantarem um pacemaker, mas a lista de espera era grande, poderia demorar alguns dias.
(o pacemaker é um pequeno aparelho que é colocado debaixo da pele para controlar e promover os batimentos cardíacos. Geralmente tem duas partes, o gerador (a caixa do pacemaker) e os eletrocateteres (pequenos cabos eléctricos que fazem a ligação ao coração. Existem muitos motivos para a implantação de um pacemaker. O envelhecer natural do sistema eléctrico do coração com a falhas da condução eléctrica é o principal motivo. Outros motivos para a implantação de um pacemaker incluem arritmias (ritmos cardíacos anómalos) com ritmo muito rápido ou lento, alterações genéticas e intervenções em válvulas cardíacas)
Veio também a notícia de que estava proibido de ir ao WC sozinho. A qualquer hora do dia ou da noite, deveria chamar a auxiliar para me levar em cadeira de rodas, mesmo até ao interior do WC, sempre vigiado. Perigo de cair.
Liguei ao Filipe. Ele apercebeu-se que não estava bem. Pedi-lhe para não dizer nada à mãe.
O ânimo que sempre tive, caiu. Pensamos na família, pensamos nos netos e no tempo que ainda nos falta viver com eles. Pensamos no que ainda queremos fazer. A perspetiva de já não sair do hospital tão cedo. Confesso que nunca pensei na morte. A morte é aquele momento. Mais importante é a qualidade do tempo que passa, até lá chegar.
("o que extingue a vida e os seus sinais, não é a morte, mas o esquecimento. A diferença entre a morte e a vida é essa." Cadernos de Lanzarote - Diário III, José Saramago)
Tive medo de ficar incapaz de viver, tive medo que o meu corpo se esquecesse de viver. Mas nunca pensei em morrer. Uma noite inteira a pensar nisto. As horas não passavam
(a noite… a noite é terrível para estes pensamentos. O tempo que não passa, o silêncio que promove, que facilita o pensamento. Para a relatividade e espaço-tempo de Einstein, o tempo pode até correr para a frente ou para trás. Nestas noites, até parece (?) que o tempo pára ou retarda, de facto)
Com companhia, fui uma vez ao WC.
14 de janeiro de 2020, terça-feira
A noite já foi, é outro dia.
Com mais frequência, as pausas cardíacas continuavam. Pouco depois das 14 horas, o Filipe e a Beta vêm à visita. Há visitas também para os meus colegas de quarto. Conversamos. O Filipe, entretanto, sai do quarto. Passado algum tempo, entra a correr e em pânico:
— Pai, pai, estás bem?
Tinha acontecido a maior pausa cardíaca até ao momento e ele, no monitor do corredor, tinha visto o traçado da minha atividade cardíaca ficar convertido numa linha reta.Piiiiiiiiii.
Passado pouco tempo, recebo a visita de duas médicas. Com caráter de urgência, saindo da longa lista de espera, vão implantar-me um pacemaker.
Volto passada uma hora, talvez. O alojamento da caixa do pacemaker é dolorosa. Está feito. Junto ao ombro esquerdo, tenho a máquina a trabalhar, afinada para os 60 bpm. Se tudo correr bem, saio no dia seguinte.
15.01.2020, 03H36M, após colocação do pacemaker
A noite não foi fácil. Com gelo em cima, fios ligados, sem me poder mexer.
(o tempo outra vez a ser mais lento)
15 de janeiro de 2020, quarta-feira
A meio da manhã, visita da médica e da enfermeira. A alta vai acontecer. Fui o último a chegar ao quarto e vou ser o primeiro a sair. O José Pereira sairia também nesse dia. Era bom que saíssem todos. Fiquei com essa mágoa. Sairiam depois, penso que estão bem. Um grande abraço para eles.
15.01.2020, 13H15M, após a alta.
A cama do Janino, eu, o Janino, o José Pereira e o Nuno Santos
A vida por um fio, que resistiu. Uma nova vida.
Álvaro de Campos disse que "a verdadeira vida é a que sonhamos na infância e que continuamos sonhando, adultos."
Com pacemaker, stent... e lente intraocular, sou um pouco cyborg,
(já somos muitos, seremos cada vez mais)
mas estou vivo, sonhei e continuo a sonhar.
Ao meio-dia tenho alta.
15.01.2020, 16H:37M, primeira foto da nova vida, com a neta Filipa
(o Rafael estava na escola)
(registo o profissionalismo de todos os trabalhadores da saúde que, me trataram de uma forma exemplar em todo o meu internamento. Disto dei notícia à administração do HSM. O meu ex-aluno, Enfermeiro André Mafra, foi de um carinho, uma atenção, um profissionalismo inexcedíveis, foi o primeiro a atender-me na sala de reanimações da urgência central, visitou-me e manteve a sua preocupação nos cuidados intensivos e no serviço de cardiologia. Muito para além do que seria a sua obrigação profissional. Dois meses depois, chegou a Covid-19. Como seria? Não poderia ser igual. Inevitávelmente)
Apresentei-me ao serviço, na ESJP, em 10 de fevereiro de 2020, exatamente um mês depois, e cinco dias antes de terminar o período de baixa do atestado médico.